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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Rodrigo

Rodrigo

Caipira...pira...toc..toc...pira..nossa...  O berço batendo na parede. O menino em pé, de fralda sorriso largo e garganta afiada canta para chamar atenção pois quer sair e não pode.
Não faz manha apenas espera a seu modo, cantando e balançando o berço.
Alegria pura, sorriso aberto sempre, mesmo quando chegaram seus primos e a atenção que era só para ele teve que ser repartida, mas, não me lembro que tenha feito muita diferença pelo menos não ficou transparente embora concordamos que teve lá suas frustações.
Assim cresceu esse menino inteligente, feliz, rechonchudo e risonho mesmo quando não conseguia falar direito e quando dizia “cocha” – calça - ficava bravo porque achávamos graça, assim como tantas outras palavras e atos que me fogem à memória.
Seu pai por circunstâncias profissionais fez várias mudanças com a família que sempre o acompanhou. Nessas idas e vindas além de conhecer cidades frequentou outras tantas escolas e novas amizades surgiram. Ro, como seus irmãos, sempre tirou de letra. Estudava muito e acompanhava os mais velhos nas pesquisas e estudos complementares.
Conheci todas as cidades e acompanhei o crescimento e peripécias. Me lembro que em Santos ficávamos preocupados. No comércio, se enrolava nos cabides e prateleiras, no calçadão ia à frente e tínhamos que ficar sempre atentos. Na praia, a mesma coisa, sempre muito independente e feliz. Participei de todos eventos que nortearam sua vida: batizado, festinhas na escola, aniversários e formatura. Organizávamos brincadeiras: fui palhaço, Papai Noel, organizei caça ao coelho da Páscoa. Éramos felizes. O tempo passou...
Rodrigo cresceu. Nessas idas e vindas terminou o ensino médio e sem cursinho entrou na Escola Politécnica – USP  - e foi morar com a vó Encarnação em São Paulo uma vez que seus pais estavam no interior.
Então... Eis que na faculdade conheceu Alessandra. Menina delicada que em sua simplicidade nos cativou. Ia para nossas festas improvisadas de Araçatuba, sem conforto nas acomodações, sem etiqueta e grandes cardápios. Demos-lhe o nome de Anjinho Barroco. O namoro progrediu com alguns percalços como em todo relacionamento.
Formatura...Gosto de homenagens e surpresas e foi assim que lhe enviei um anjo para “abençoar” esse dia todo especial. Foi lindo e nos emocionou também.
Bem... A vida continua. O noivado e casamento marcado. Entro em cena novamente e uma espevitada palhacinha deu o tom da festa no chá de panela. Diversão pura.
Fui testemunha no seu casamento num dia lindo e ensolarado e a vida seguiu. A distância atrapalhou um pouco e nossos encontros diminuíram. Vieram os filhos lindos algumas mudanças de casa, de cidade e de empresa. A vida toma rumo diferente: inquietações, dúvidas, noites insones e a decisão: deixar o país. Era um sonho antigo que se concretiza agora não sem algum desconforto.
O que dizer essa tia gatosa (gata idosa) que ama intensamente vocês, que gosta de paparicar, de tocar e que já não tem tanto ânimo como outrora? A distância vai dificultar embora não será impossível pois o mundo virtual está aí (preciso aprender). Sejam felizes é o que desejo. Pedirei para os mentores de Jesus cuidarem bem de vocês assim como o fizemos nesses anos todos. Para a Alessandra um pedido: Abra mais o seu coração que sei que é grande e carinhoso, solte a doçura que tem dentro de você  que teima em esconder pois um anjinho tem muito pra dar apesar que não é mais anjo e sim bailarina. Para as crianças: Saúde e Sucesso. Para você aquele abraço apertado da Tia Gê.





AMO VOCÊS

02/2017








PARA DESCONTRAIR

PARA   DESCONTRAIR        -        EM ORDEM ALFABÉTICA

Grupo da Oficina Literária para Adultos Maiores


Hora da saudade é com dona Dalva
Voz afinada e boa memória
Sua participação nos motiva
Falarmos de nossa história

Alice risonha e feliz
Novidade ela tem sempre
Nos traz comes e bebes
Fica todo mundo contente

Dayr elegante e discreta
Fala pouco e muito cria
Suas ausências preocupam
Nos priva de sua companhia

Reunião na casa da Hedi
 Dia cheio de alegria
Nos serviu “cartofipufa”
Uma delícia de iguaria
                
Pensa numa pessoa leal
Que nunca fala de tristeza
Essa é a mignon Iandara
Está aí sua beleza
       
Grande e leal companheiro
Sorriso largo tem o Batista
Sempre aguardamos com ansiedade
Esse grande altruísta

Fala bastante também com as mãos
Em comum temos muito
Julia Sempre alegre e sorridente
Para nós não falta assunto

A elegante Leticia
Com seu hábito de leitora
Presta sua colaboração
Às aulas da professora
               
Maria Celia é o nome dela
Mas gosta de ser Celi
Aguardamos boas festas
No seu sítio Jataí
     
A mais nova aluna da turma
Já se mostra a que veio
Maria Cristina acrescentou
À turma um novo recheio
     
Maria Isabel muito meiga
Sempre chega de mansinho
Prioridade hoje são os netos
Deixa um vazio em nosso ninho
                
A  carinhosa Marinalda
É uma leitora voraz
Na hora de escrever ou falar
Caladinha nunca o faz  
             
Silvia a nossa caçula
Tem paciência de Jó
Muito calor, muito frio
Quem resolve é ela só

Nossa escritora Valentina
Deixa todo mundo vexado
Esperando o fim da história
Ir embora contrariado
                
Tímido e meio sem jeito
Vanderlei por aqui chegou
Desbancando todo mundo
Com seus textos emocionou
                
Sorridente pesquisadora
Vera pensa que nos engana
Não tem trazido as lições
Prefere a dança cigana
                
Ter Sandra como professora
É privilégio de poucos
Na sala soltamos as amarras
Sonhos de heróis e de loucos
                
Eu sou muito faladeira
Também gosto de ajudar
Preciso da Ian e da Mari 
Costumo me atrapalhar
               
 Geni 02/2017















LUMINOSIDADE/OBSCURIDADE

LUMINOSIDADE/OBSCURIDADE



Na mina escura da vida, pedras preciosas
dão o tom no brilho da esperança
Ela chega com a luz do sol.
Desabrochando a flor  liberta a semente sufocada no ventre da terra.
Na   fadiga,
a mãe  libera a pérola  com a dor superlativa da mulher que pari
O sal do suor e lágrima se misturam ao choro, riso e cansaço
A água desemboca trazendo o tesouro da vida.
A criança  expulsa  do conforto  do ventre
é confrontada pela dor da liberdade 
Chora abrindo as comportas do pulmão
ar, alimento, respiração tranquila , sono profundo
No rito da passagem a vida surge em abundância
 O fogo do poente colore a tela em branco
decorando  um momento único.
Anoitece, a vela da esperança é acesa
alumiando a escuridão.
Recomeço,
no percurso a vida  o rio
se transforma em palco
onde vilões e mocinhos contracenam.
Final do espetáculo, o mar
transformação
novo ciclo
A vida continua...



Geni 02/2017 





Conto - O último presente

Conto - O último presente


Sala de culto silenciosa. Um caixão sem velas, sem flores e sem choro.  Alguns iguais, acompanhados de funcionários da casa, observam indiferentes a chegada de uma conhecida senhora.
Acompanhada de um casal, ela coloca sobre as mãos do defunto um chapéu e faz silenciosa oração. Um filme da rotina de alguns dos últimos anos passa rapidamente em sua memória afetiva.
Casa de Repouso Abílio Mendes, instituição metodista destinada a receber idosos com variados problemas, cultivava uma horta e, ao longo, mesinhas de cimento sob árvores frutíferas acomodam os internos à espera de suas visitas.
A distância era grande e agravava as dificuldades, mas a presença dos três visitantes era religiosa, tanto nos feriados como nas férias.
Paulo, andar trôpego, ombros curvados e boca retorcida, se apressava em encontrá-los: a alma de criança ansiava pelos presentes que certamente viriam. Embora de difícil compreensão por estranhos, a fala registrava claramente sua alegria pelas visitas – e principalmente pelos presentes.
Ninguém sabia se o mal o acompanhava desde o nascimento, ou se o teria acometido ao longo da vida; se algum tratamento teria sido possível, se uma escola adequada pudesse ter amenizado seus problemas. O que se sabia com certeza é que ele estava ali, mantido pela aposentadoria conquistada no trabalho sob o sol quente da roça, malgradas suas deficiências.
Adorava presentes, e sempre pedia os mesmos: rádio de pilha e relógio de pulso. O rádio, cuidadosamente escondido dos colegas debaixo do colchão da cama, tinha vida curta: mergulhava-o na água à primeira dificuldade de recepção, ou o jogava fora quando acabavam as pilhas. O relógio não podia ser digital, porque não tinha ponteiros, elemento imprescindível, segundo ele. Tanto que, certa feita, assim que abriu o pacote, fez cara de desagrado e o deu de presente a um amigo porque, embora muito bonito, não tinha  os tais ponteiros. E assim era sempre: os mesmos presentes que, segundo ele, invariavelmente tinham algum defeito.
Certa feita, influenciado por um amigo mais esperto e chegado a dar palpites, fez um pedido diferente. Desta vez, queria um chapéu. Mas não qualquer um: tinha que ser Ramenzoni, chapéu de feltro usado por pessoas em melhores condições financeiras.
Pedido feito, pedido anotado. E mais: as visitas que aconteciam por ocasião dos aniversários de Paulo se transformavam em eventos especiais, com direito a bolo, refrigerante, balões coloridos, festas que agregavam os habitantes da casa, se não todos, pelo menos aqueles que reuniam condições de participar. Assim, o presente ficou prometido para seu próximo aniversário.
A busca pelo presente revelou duas verdades: sim, o chapéu era muito bonito e, sim, seu preço situava-se vários degraus acima do patamar normalmente admitido para tais mimos. Porém, a antevisão da carinha de satisfação e o brilho no olhar ao exibir seu rico presente compensava qualquer sacrifício.
Mas eis que chega a roda viva e carrega o destino... Paulo não aguentou esperar. Foi embora da maneira que sempre vivera: simples, sem mágoas, sem dores sem saudades. Quis o destino que seu último presente não tivesse a serventia usual. Paulo levou-o nas mãos pálidas, certamente para saudar os que o antecederam na grande viagem.
Com a certeza de que a missão fora cumprida e após algumas lágrimas, as visitas foram embora. Felizes, porque, de certa forma, também o fizeram feliz.

Geni 02/2017




quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

O caso do vestido

Nos filmes e séries de TV assistimos a adaptações de grandes obras de renomados autores, que nos revelam o comportamento das famílias tradicionais brasileiras. Não só dos senhores de engenho e dos grandes cafeicultores do interior paulista, com seus escravos, mas da forma de vida da sociedade em geral até meados do século passado.
As histórias dessa sociedade, tradicionalista e patriarcal, nos revelam a verdade rígida de um comportamento da brutalidade masculina e total submissão feminina. No poema Caso do Vestido, Drummond evidencia esse machismo exacerbado na sociedade patriarcal de um possível cotidiano da infância do autor.
Chamam a atenção os pronomes na segunda pessoa, tratamento cerimonioso e arcaico, distanciando os interlocutores na conversa em que, questionada, a mãe narra às filhas a paixão do pai das pequenas por outra mulher, colocando-se numa posição submissa diante da humilhante traição.
Ao falar sobre a outra, a mãe a chama de dona, mulher do demo, a amante, pecadora, a quem caberia o papel de satisfazer os caprichos sexuais de seu marido. De si, dizia de sua redução existencial a um papel familiar de total negação, mas a morte não chegava...
A mãe, provedora sem direito à palavra, silenciosa em seu desejo, mostra para as filhas na figura do vestido a revolta, o padecimento do corpo a humilhação do abandono.
Na figura do vestido ela vê o próprio corpo e o da outra, ambos desprovidos da beleza física de outrora. Unidas pelo sofrimento diante da desigualdade de forças entre o homem e a mulher, seja ela mãe ou dona, mas sempre um objeto.
Na dor desse monólogo implora pelo consolo das filhas e, sem direito a explicação, calada, põe o prato à mesa.
Nesse poema narrativo, Drummond mostra não só a submissão e humilhação  da mulher ao sufocar seus anseios, mas também um prazer silencioso na dor. O vestido na parede a faz lembrar-se constantemente de seu lugar como sofredora; ela meio que se alimenta desse sentimento de profunda melancolia na autopunição e autopiedade.
É uma maneira de se fazer presente na memória como um fantasma que vagueia e assusta na lembrança de todos. Ela necessita ser percebida, mesmo que na maneira mais cruel. E o vestido é seu passaporte para a dor que a mantém viva.
Drummond mostra em seus versos um conhecimento real sobre o assunto e evidencia o comportamento machista da época. Apresenta um quase pedido de desculpas pelos sofrimentos que poderia ter causado.

Baseado no texto de Carlos Drummond de Andrade



“......Chorei, chorei...  até ficar com dó de mim...”  Camarim-Chico Buarque.


“...logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato e abro meus braços pra você...” Com açúcar e com afeto – Chico Buarque




Geni 21-01-2016

Entre a caridade e a prudência



Fui criada numa família muito simples com dificuldades até, mas dentro dos padrões cristãos. Compartilhávamos o pouco com vizinhos e amigos. A ajuda também era mútua em ocasiões de doenças ou partos. Nas longas prosas da tarde no portão trocávamos experiências e quando caía a noite procurávamos  no céu coalhado de estrelas as Três Marias e nos deliciávamos com as imagens da lua tentando decifrar o terrível dragão. Era divertido dormíamos cedo ( não tínhamos TV)não sem antes fazer a oração e pedir a bênção dos pais.

Na ampulheta o tempo corre devagar, mas implacável. Quantas mudanças na política, na economia na oportunidade para todos. Mais comida na mesa, as necessidades aumentam na medida em que a  tecnologia avança. Mas, no país imenso abençoado por Deus como diz o poeta, com a costa maravilhosa, florestas, cachoeiras, rios imensos, variedade de clima, tempestades e rajadas de vento como os camicases avançam sobre nós tisnando nossas esperanças. Não são fenômenos da natureza, pois até nesse quesito fomos abençoados. São rajadas de metralhadoras, de impropérios de incompetência, de desmandos, da roubalheira, de conivência com o crime que é “mais organizado” que nosso governo. E aí perguntamos: — Como ficamos nós no meio desse fogo cruzado? O noticiário dos meios de comunicação são recheados de notícias escabrosas  de crimes hediondos e discussões abstratas  de defensores e acusadores sempre no tom  meio palanque meio sacristia em  uma arenga sem fim que não se converte em resultados..

Não sabemos em quem confiar, não divisamos que futuro esperar, desolados, sós,  deparamos-nos com a bandidagem e insegurança, não olhamos no olho de ninguém ao nosso lado. Todos se nos parecem inimigos, algum lobo à espreita da presa. Infelizmente já nos acostumamos com a morte ao nosso lado como uma sombra que passa,  só a dor não passa. Gestos simples de gentileza há muito foram esquecidos “é cada um por si”. Vivemos entrincheirados prontos para a defesa e o ataque. Escondidos debaixo do tapete os nossos preconceitos enraizados e vez em quando mostram suas unhas polidas mesmo  que sutilmente.

Falar sobre isso nem vem o caso agora nem haveria espaço para tanto. O que pretendo relatar é uma experiência por mim vivida que deixou aflitos meus familiares considerando meu gesto imprudente demais para os moldes de hoje não sem razão pois algumas experiências vividas foram muito dolorosas.

Estacionei o carro em frente ao Pet Shopping, desci com a bolsa a tiracolo em minha cadela nos braços ansiosa para o banho por conta do sol escaldante e o calor insuportável. Agachado rente ao muro um rapaz aparentando menos de trinta anos  logo se dirigiu à mim pedindo ajuda. Arrepiei-me toda antevendo um assalto. Tinha ele um pequeno celular às mãos estava de chinelo, bermuda e um boné trajes comuns que estamos acostumados ver nas ruas também nos noticiários. Todos têm a mesma cara e  “ninguém traz estrela na testa” como diz o ditado. Diante do impasse fiquei sem saber o que fazer com minhas ideias brigando entre a desconfiança e o coração. Este falou mais alto. O rapaz queria ajuda  porque precisava ligar para o senhor cuja casa ele estava em frente e para qual havia trabalhado. Tinha um cartão nas mãos com um número de telefone, mas não conseguia ligar do seu pois estava sem crédito e o morador não estava em casa. 

Angustiada na luta interna abri minha bolsa, pequei meu celular e com ela aberta e a cachorra no colo com dificuldade vi o número e disquei. Realmente quem atendeu foi o senhor que ele havia falado e pediu que o esperasse que logo estaria ali. Ficou muito feliz e agradeceu muito, brincou com minha cachorra e nos despedimos. Ufa, que alívio mas dentro de mim o remorso por ter  a princípio desconfiado. O Evangelho nos ensina a amar o nosso irmão como a nós mesmos mas também que “A caridade não dispensa a prudência” e ficamos nós nesse turbilhão de sentimentos desencontrados.

Mesmo assim ainda acreditamos na justiça dos homens que embora lenta e meio manca está fazendo seu trabalho mas muito na Justiça Divina, essa sim, implacável e com certeza, haveremos de ver reinar a reorganização e reconstrução desse país maravilhoso chamado Brasil.


Geni    21/01/2016


Abrindo um nicho na memória

São Paulo. O acelerado processo de industrialização, aliado à  modernização do parque industrial, vira símbolo de progresso e de  trabalho. Após o IV Centenário, a terra da garoa ganha os slogans de “a cidade que mais cresce no mundo”, “a cidade não pode parar”.

Estamos em 1956. O governo de Wladimir de Toledo Piza instala a primeira indústria automotiva, atraindo milhares de migrantes, do interior e de todos os outros estados brasileiros, que vinham sempre com o mesmo objetivo: buscar no novo Eldorado a oportunidade que a terra natal não lhes dava. Um trabalho digno, com carteira assinada, o vislumbre de um futuro melhor para os filhos. Em janeiro desse ano, enquanto JK tomava posse como presidente eleito depois da morte de Getúlio Vargas, começa a saga de uma família do interior paulista.
Silvio Bizzo, meu pai, integra-se à leva de migrantes. O grande sonho era reforçado pelas narrativas de parentes, amigos e conhecidos que sabiam de pessoas que prosperaram, tiveram sucesso em suas empreitadas. Embalado por esse sonho, fixa a ideia de ser um deles e começa a pôr em prática o que outros achavam loucura. Afinal, que loucura era essa que brindava com o sucesso a tantos outros?

Mas nessa família havia um complicador que a diferenciava das demais. Seis filhos menores, a mais velha com apenas quinze anos. Aos filhos, três meninos e três meninas, somavam-se sua mãe idosa e a esposa que, embora jovem, apresentava já sinais do grande mal que a acometeria logo depois.
Mas o sonho já havia virado obstinação. Sílvio colocou a pequena e simples casa à venda e começou a dar forma à jornada difícil que iniciaria. Arrumou transporte e, por um motivo que só Deus prevê, não encontrou comprador para a casa, restando a saída de alugá-la por um período de um ano, com pagamento antecipado para bancar os custos da mudança. Em um dia daquele janeiro, que o tempo me apagou da memória, tinha início a empreitada.Umas poucas tralhas velhas a que chamávamos móveis foram amontoadas no caminhão que deixara um espaço no meio para acomodar também os filhos e a mulher. Sua mãe ficara com uma filha, até que ele tivesse condições buscá-la. Todos choramos na despedida, mas o sono adormentou nossas almas e o corpo cansado não percebeu o passar lento das horas,

A pequena casa, num morro do Alto da Vila Maria, resumia-se a apenas um quarto grande dividido por uma improvisada cortina, um minúsculo quartinho e uma também pequena cozinha. Conforto zero. O fogão a querosene, que havíamos ganhado não me lembro de quem, exalava um cheiro muito forte, o que aumentava os vômitos de minha mãe.
Para chegar à rua esburacada havia uma ladeira cujas constantes chuvas a faziam lamacenta e escorregadia. Contornando um grande terreno baldio que servia de campo de futebol de várzea, subia-se a rua sem asfalto para chegar ao terminal de ônibus, bem no alto do morro.

O sonho do Eldorado começara a se concretizar já antes de nossa ida. Meu pai havia arrumado emprego em uma fábrica quando foi procurar casa para alugar. Meu pai empregado, minha irmã, com seus conhecimentos de costura, pegava peças na pequena confecção para fazê-las em casa. Eu ajudava nos serviços domésticos e cuidava da caçula de apenas quatro anos de idade.

Tudo se encaminhava. Apenas minha mãe, sem diagnóstico para o mal que a acometia, tinha o abdome inchado, não comia e vomitava muito. Em fevereiro, a um mês de nossa chegada, meu pai, músico que era, retornou a Araçatuba para cumprir um compromisso naquele carnaval. Na volta, encontrou minha mãe em uma situação muito difícil. O desespero trouxe o arrependimento da aventura. Rapidamente costurou a volta com a família. A situação então era pior. Não dava para retornar à casa, alugada com pagamento antecipado. Sem ter onde morar, começamos a peregrinação em busca de uma solução emergencial.
Uma tia muito próxima, que tinha um pouco mais de conhecimento, foi até São Paulo para nos ajudar na difícil tarefa. Mais um pouco da tralha  ficou para trás. O pouco que restou foi despachado pela estrada de ferro, que também nos transportou.


Era março. Viagem cansativa para agonia de minha mãe, mas que fazia a alegria de minha irmãzinha e a priminha de sua idade que viajava conosco. As duas cantavam e dançavam para passar as horas, enquanto o dragão de ferro soltava fumaça pelo nariz e o vapor lambia o capim-santo que margeava a estrada. Quantas horas? Não sei.
O que sei é que, quando chegamos, fomos repartidos pelas casas de vizinhos e familiares, pois os móveis custariam a chegar e não tínhamos casa.
Tia Iracema cuidou de procurar ajuda para minha mãe. Meu pai conseguiu alugar uma casinha perto da nossa. Era pior que a de São Paulo. Três cômodos dispostos como corredor, um janelão com enorme fresta e uma minúscula cozinha de madeira, com um fogão a lenha que quase caía avançando pela frágil madeira. Apesar disso tudo, nós crianças adoramos, porque ficaríamos perto dos amigos e poderíamos voltar para a mesma escola.
Meu irmão, com doze anos, e minha irmã de quinze retornaram ao trabalho que tinham antes: ela costureira e ele aprendiz de alfaiate. Meu pai voltou para a oficina de carpintaria em que ele trabalhara.
Tudo isso aconteceu no prazo de dois meses.

A casinha era parede-meia, o que significava repartirmos o mesmo pequeno quintal e a latrina ao fundo com uma barulhenta e grande família. Não havia banheiro. Me pai carpinteiro habilidoso que era, improvisou próximo à casa um cômodo também de rústica madeira onde fazia subir por meio de rodilhas um tambor com furinhos embaixo, à guisa de chuveiro.

Minha mãe foi internada na Santa Casa de Misericórdia, num local a que chamavam salão, onde as irmãs de caridade atendiam os pobres sem seguro-saúde e sem dinheiro. O amplo salão, com um piso muito limpo e brilhante, abrigava muitos leitos enfileirados.
É nesse ponto que ficou um registro impactante na minha memória. Na primeira visita que, acompanhados da tia, fizemos a nossa mãe, encontramo-la ajudando as irmãs nas tarefas junto às outras que não podiam se movimentar.  Me lembro dela com um camisolão branco muito pálida e com o abdome enorme. Nos abraçou animada pois já se preparava para a cirurgia.

Conversamos um pouco e ela perguntou da caçula. Levamo-la até à grande janela. Através de uma pequena abertura, abanou a mão para a filhinha com muitas lágrimas. porque não permitiam a entrada de crianças. Choramos juntas, mas nem por sonho imaginávamos o que haveria de vir. Essa triste imagem tomou conta de minha memória durante muito tempo.
No portão do grande prédio e com vasto jardim que perdiam as folhas para o outono no mês de abril despedimo-nos de nossa tia. Ali ela nos dá a notícia: nossa mãe sofria de câncer e a preparavam para a cirurgia. Contava apenas 35 anos. Esse terrível momento grudou na minha mente, a dor se fez minha. Tentando esconder a situação dos pequenos, chorei sem parar durante dois dias e duas noites, imaginando-me sozinha.
Bem. A vida continuou. Escrevê-la daria um livro. Recuperação lenta e uma qualidade de vida razoável. Assim terminamos o ano. Vencido o prazo do aluguel, podíamos voltar para nossa casa. Também simples, mas nossa.

Estávamos felizes. O ano de 1957 correu dentro da possível normalidade, sempre com muito sacrifício, mas com a confiança de que minha mãe havia se curado. Ao final do ano, outras dores começaram e, no outro abril, nova cirurgia, da qual não mais se recuperou. Nesse ano comecei fazer um curso de admissão ao ginásio e alternava os cuidados com a casa, com ela e com os estudos ( tinha eu 16 anos). Tivemos sempre ajuda de bons vizinhos e de alguns parentes, principalmente minha tia. Éramos muito unidos e nos ajudávamos mutualmente. Em setembro de 1958 ela veio a óbito em casa mesmo, depois de lenta agonia com superlativas dores.

O ano de 1956 foi um dos mais difíceis de nossas vidas. Talvez por isso o tenha inconscientemente trancado nesse nicho com a chave enferrujada perdida.
Nesta oportunidade, em que nos reunimos com a professora Sandra para falarmos sobre memória, num esforço hercúleo arrebentei a fechadura e trouxe à tona essa história que muito poucos amigos conhecem e da qual nem os jovens da família têm conhecimento. Uma fase de nossa vida   que ficou rebobinada durante tanto tempo.
Obrigada, professora, por me permitir limpar, juntar os pedaços soltos para deixá-los ir fazendo mais leve meu coração.

Geni       21/01/2016