São Paulo. O acelerado processo de industrialização, aliado à
modernização do parque industrial, vira símbolo
de progresso e de trabalho. Após o IV
Centenário, a terra da garoa ganha os slogans de “a cidade que mais cresce no
mundo”, “a cidade não pode parar”.
Estamos em 1956. O governo de Wladimir de Toledo Piza instala
a primeira indústria automotiva, atraindo milhares de migrantes, do interior e de
todos os outros estados brasileiros, que vinham sempre com o mesmo objetivo:
buscar no novo Eldorado a oportunidade que a terra natal não lhes dava. Um
trabalho digno, com carteira assinada, o vislumbre de um futuro melhor para os
filhos. Em janeiro desse ano, enquanto JK tomava posse como presidente eleito
depois da morte de Getúlio Vargas, começa a saga de uma família do interior
paulista.
Silvio Bizzo, meu pai, integra-se à leva de migrantes. O grande
sonho era reforçado pelas narrativas de parentes, amigos e conhecidos que
sabiam de pessoas que prosperaram, tiveram sucesso em suas empreitadas.
Embalado por esse sonho, fixa a ideia de ser um deles e começa a pôr em prática
o que outros achavam loucura. Afinal, que loucura era essa que brindava com o
sucesso a tantos outros?
Mas nessa família havia um complicador que a diferenciava das
demais. Seis filhos menores, a mais velha com apenas quinze anos. Aos filhos,
três meninos e três meninas, somavam-se sua mãe idosa e a esposa que, embora
jovem, apresentava já sinais do grande mal que a acometeria logo depois.
Mas o sonho já havia virado obstinação. Sílvio colocou a
pequena e simples casa à venda e começou a dar forma à jornada difícil que
iniciaria. Arrumou transporte e, por um motivo que só Deus prevê, não encontrou
comprador para a casa, restando a saída de alugá-la por um período de um ano,
com pagamento antecipado para bancar os custos da mudança. Em um dia daquele
janeiro, que o tempo me apagou da memória, tinha início a empreitada.Umas poucas tralhas velhas a que chamávamos móveis foram
amontoadas no caminhão que deixara um espaço no meio para acomodar também os
filhos e a mulher. Sua mãe ficara com uma filha, até que ele tivesse condições
buscá-la. Todos choramos na despedida, mas o sono adormentou nossas almas e o
corpo cansado não percebeu o passar lento das horas,
A pequena casa, num morro do Alto da Vila Maria, resumia-se a
apenas um quarto grande dividido por uma improvisada cortina, um minúsculo
quartinho e uma também pequena cozinha. Conforto zero. O fogão a querosene, que
havíamos ganhado não me lembro de quem, exalava um cheiro muito forte, o que
aumentava os vômitos de minha mãe.
Para chegar à rua esburacada havia uma ladeira cujas
constantes chuvas a faziam lamacenta e escorregadia. Contornando um grande
terreno baldio que servia de campo de futebol de várzea, subia-se a rua sem
asfalto para chegar ao terminal de ônibus, bem no alto do morro.
O sonho do Eldorado começara a se concretizar já antes de
nossa ida. Meu pai havia arrumado emprego em uma fábrica quando foi procurar casa
para alugar. Meu pai empregado, minha irmã, com seus conhecimentos de costura,
pegava peças na pequena confecção para fazê-las em casa. Eu ajudava nos
serviços domésticos e cuidava da caçula de apenas quatro anos de idade.
Tudo se encaminhava. Apenas minha mãe, sem diagnóstico para o
mal que a acometia, tinha o abdome inchado, não comia e vomitava muito. Em
fevereiro, a um mês de nossa chegada, meu pai, músico que era, retornou a
Araçatuba para cumprir um compromisso naquele carnaval. Na volta, encontrou minha
mãe em uma situação muito difícil. O desespero trouxe o arrependimento da
aventura. Rapidamente costurou a volta com a família. A situação então era
pior. Não dava para retornar à casa, alugada com pagamento antecipado. Sem ter
onde morar, começamos a peregrinação em busca de uma solução emergencial.
Uma tia muito próxima, que tinha um pouco mais de
conhecimento, foi até São Paulo para nos ajudar na difícil tarefa. Mais um
pouco da tralha ficou para trás. O pouco
que restou foi despachado pela estrada de ferro, que também nos transportou.
Era março. Viagem cansativa para agonia de minha mãe, mas que
fazia a alegria de minha irmãzinha e a priminha de sua idade que viajava
conosco. As duas cantavam e dançavam para passar as horas, enquanto o dragão de
ferro soltava fumaça pelo nariz e o vapor lambia o capim-santo que margeava a
estrada. Quantas horas? Não sei.
O que sei é que, quando chegamos, fomos repartidos pelas
casas de vizinhos e familiares, pois os móveis custariam a chegar e não
tínhamos casa.
Tia Iracema cuidou de procurar ajuda para minha mãe. Meu pai
conseguiu alugar uma casinha perto da nossa. Era pior que a de São Paulo. Três
cômodos dispostos como corredor, um janelão com enorme fresta e uma minúscula
cozinha de madeira, com um fogão a lenha que quase caía avançando pela frágil
madeira. Apesar disso tudo, nós crianças adoramos, porque ficaríamos perto dos
amigos e poderíamos voltar para a mesma escola.
Meu irmão, com doze anos, e minha irmã de quinze retornaram
ao trabalho que tinham antes: ela costureira e ele aprendiz de alfaiate. Meu
pai voltou para a oficina de carpintaria em que ele trabalhara.
Tudo isso aconteceu no prazo de dois meses.
A casinha era parede-meia, o que significava repartirmos o
mesmo pequeno quintal e a latrina ao fundo com uma barulhenta e grande família.
Não havia banheiro. Me pai carpinteiro habilidoso que era, improvisou próximo à
casa um cômodo também de rústica madeira onde fazia subir por meio de rodilhas um
tambor com furinhos embaixo, à guisa de chuveiro.
Minha mãe foi internada na Santa Casa de Misericórdia, num
local a que chamavam salão, onde as irmãs de caridade atendiam os pobres sem
seguro-saúde e sem dinheiro. O amplo salão, com um piso muito limpo e
brilhante, abrigava muitos leitos enfileirados.
É nesse ponto que ficou um registro impactante na minha memória.
Na primeira visita que, acompanhados da tia, fizemos a nossa mãe, encontramo-la
ajudando as irmãs nas tarefas junto às outras que não podiam se
movimentar. Me lembro dela com um
camisolão branco muito pálida e com o abdome enorme. Nos abraçou animada pois
já se preparava para a cirurgia.
Conversamos um pouco e ela perguntou da caçula.
Levamo-la até à grande janela. Através de uma pequena abertura, abanou a mão
para a filhinha com muitas lágrimas. porque não permitiam a entrada de
crianças. Choramos juntas, mas nem por sonho imaginávamos o que haveria de vir.
Essa triste imagem tomou conta de minha memória durante muito tempo.
No portão do grande prédio e com vasto jardim que perdiam as
folhas para o outono no mês de abril despedimo-nos de nossa tia. Ali ela nos dá
a notícia: nossa mãe sofria de câncer e a preparavam para a cirurgia. Contava apenas
35 anos. Esse terrível momento grudou na minha mente, a dor se fez minha.
Tentando esconder a situação dos pequenos, chorei sem parar durante dois dias e
duas noites, imaginando-me sozinha.
Bem. A vida continuou. Escrevê-la daria um livro. Recuperação
lenta e uma qualidade de vida razoável. Assim terminamos o ano. Vencido o prazo
do aluguel, podíamos voltar para nossa casa. Também simples, mas nossa.
Estávamos felizes. O ano de 1957 correu dentro da possível
normalidade, sempre com muito sacrifício, mas com a confiança de que minha mãe havia
se curado. Ao final do ano, outras dores começaram e, no outro abril, nova
cirurgia, da qual não mais se recuperou. Nesse ano comecei fazer um curso de
admissão ao ginásio e alternava os cuidados com a casa, com ela e com os
estudos ( tinha eu 16 anos). Tivemos sempre ajuda de bons vizinhos e de alguns
parentes, principalmente minha tia. Éramos muito unidos e nos ajudávamos
mutualmente. Em setembro de 1958 ela veio a óbito em casa mesmo, depois de
lenta agonia com superlativas dores.
O ano de 1956 foi um dos mais difíceis de nossas vidas. Talvez
por isso o tenha inconscientemente trancado nesse nicho com a chave enferrujada
perdida.
Nesta oportunidade, em que nos reunimos com a professora
Sandra para falarmos sobre memória, num esforço hercúleo arrebentei a fechadura
e trouxe à tona essa história que muito poucos amigos conhecem e da qual nem os
jovens da família têm conhecimento. Uma fase de nossa vida que ficou rebobinada durante tanto tempo.
Obrigada, professora, por me permitir limpar, juntar os pedaços
soltos para deixá-los ir fazendo mais leve meu coração.
Geni 21/01/2016